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QUANDO A VIDA PERDE A COR

o que a depressão quer nos mostrar?

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Há momentos em que tudo parece desabar. O alimento perde o sabor, o corpo pesa como se carregasse uma tonelada de pedras e o tempo se arrasta, indiferente. Para alguns,  pode parecer preguiça, falta de vontade, mas não é — é como se algo em nós fosse desligado. A alma, antes pulsante, recolhe-se. É nesse território sombrio e suspenso que a depressão costuma se instalar.

Costuma-se falar da depressão como uma doença, um desequilíbrio químico, um estado mental que precisa ser corrigido. E, em parte, é verdade. O sofrimento é real, e o cuidado médico muitas vezes torna-se necessário. Mas há uma outra dimensão desse fenômeno que muitas vezes é esquecida: a  dimensão simbólica, ou, nas palavras de Carl Gustav Jung, a dimensão da alma.

Quando a vida perde a cor, pode ser um chamado da psique para que algo, até então ignorado, seja finalmente escutado.

O RECOLHIMENTO DA ALMA 

A depressão é, antes de tudo, uma retirada. A pessoa se afasta do mundo, perde o interesse por tudo o que antes a movia, e muitas vezes se sente culpada por isso. Mas, sob a ótica da Psicologia Analítica, essa retirada pode ter um sentido — não o de fuga, mas o de recolhimento.

Jung dizia que há momentos em que a alma “regride” para dentro, buscando reorganizar-se. Assim como a natureza recolhe sua seiva no inverno, a psique humana, em certos períodos, volta-se para o interior, retirando energia do mundo externo. Essa retração pode ser vivida como uma espécie de morte simbólica. O ego — essa parte de nós que se ocupa do cotidiano, do controle e das conquistas — perde força. E isso assusta, porque estamos acostumados a medir nossa vitalidade pelo quanto produzimos, desejamos ou realizamos.

Mas o que acontece quando o ego perde o comando sobre o rumo das coisas?

 

É nesse ponto que muitos entram em desespero. O ego quer “sair da depressão” o quanto antes, recuperar o brilho, retomar a produtividade. No entanto, outro lado de nós insiste em dizer:  “olhe para outra direção, é hora de escutar.”

O SILÊNCIO QUE INCOMODA 

No silêncio da depressão, as distrações perdem o efeito. Antigas certezas se dissolvem. O que antes servia de abrigo — o trabalho, as relações, as conquistas — já não protege do vazio.

Esse vazio, tão temido, é também um campo fértil. O  inconsciente usa o sofrimento como linguagem. O que o ego chama de “crise” pode ser, na verdade, um movimento compensatório da psique, tentando restaurar o equilíbrio. Alguém que sempre viveu voltado apenas para fora — buscando reconhecimento, sucesso, aprovação —pode reagir com um colapso interior, forçando um mergulho nas camadas esquecidas da existência.

A depressão, nesse sentido, pode ser vista como uma mensageira: ela traz um conteúdo que o ego não queria ver. Talvez uma dor antiga, uma culpa não elaborada, um desejo reprimido, ou simplesmente a necessidade de um novo sentido de vida. Mas essa mensageira não chega de maneira delicada, não pede licença e nem bate à porta —ela derruba a casa.

 

A SOMBRA E O CHAMADO À AUTENTICIDADE

A depressão muitas vezes é o grito da sombra. A sombra é tudo aquilo que rejeitamos em nós mesmos: aspectos negados, emoções reprimidas, fragilidades e até talentos esquecidos, mas ela permanece viva, agindo no inconsciente.

Quando o ego se prende demais a uma forma — a do forte, do prestativo, do controlado — tudo o que não se encaixa é lançado às sombras. As emoções esquecidas fermentam: raiva, inveja, medo, fragilidade. Um dia, o que foi exilado sobe à superfície, pedindo espaço para existir. Então a pessoa sente, com espanto e cansaço: "não posso mais sustentar essa figura que me tornei".

O corpo não quer levantar, a mente não quer pensar, a vontade não quer querer. Tudo exige uma pausa. É como se a psique dissesse: “basta de mascarar a dor”. O colapso, então, pode ser também um pedido da verdade.

Muitos que atravessam a depressão relatam uma sensação de despersonalização, como se tivessem perdido a si mesmos. Mas, paradoxalmente, é nesse esvaziamento que o novo eu começa a germinar. A sombra, quando acolhida, revela facetas adormecidas — sensibilidade, espontaneidade, criatividade. Por trás do colapso pode haver um renascimento.

O MITO DA LUZ CONSTANTE

Vivemos em uma cultura obcecada pela positividade. “Pense positivo”, “você atrai o que vibra”, “seja luz”. Esses mantras, embora bem-intencionados, podem ser cruéis para quem está imerso na escuridão. Eles reforçam a ideia de que a dor é um erro, algo a ser corrigido rapidamente.

Mas a psique é feita de polaridades — luz e sombra, razão e instinto, consciência e inconsciente. Não se trata de escolher um lado, mas de integrar os opostos. A vida não é uma linha reta de felicidade; é um ciclo. E a depressão pode ser uma das formas pelas quais a natureza psíquica tenta restaurar esse ciclo.

O mito de Perséfone, raptada por Hades e levada ao submundo, simboliza bem esse processo. Perséfone precisa descer para o reino das sombras para, mais tarde, retornar à superfície transformada. Sua descida é dolorosa, mas necessária: ela deixa de ser apenas filha de Deméter e se torna rainha do mundo inferior — uma mulher inteira, capaz de transitar entre luz e treva.

Assim também acontece com a alma: ela precisa, às vezes, descer. O inferno psíquico é também um lugar onde se encontram partes perdidas de nós mesmos.

O SENTIDO SIMBÓLICO DA DOR

Para Jung, a cura não está em eliminar o sintoma, mas em compreender seu sentido simbólico. A depressão vista assim, deixa de ser apenas um obstáculo e se torna uma mensagem. Não uma mensagem simples, mas uma convocação para um trabalho interior. Um espaço para um diálogo com o inconsciente.

Às vezes, a depressão quer nos mostrar o quanto vivemos distantes de nós mesmos,  quer que reconheçamos uma parte nossa que foi consistentemente silenciada.

Há pessoas que, após um longo período depressivo, relatam uma mudança profunda na forma de ver o mundo: tornam-se mais compassivas, mais simples, mais verdadeiras. É como se o sofrimento lapidasse o ego, reduzindo-o ao essencial. O que antes era orgulho torna-se humildade; o que antes era aparência vira substância.

A alma, ao atravessar a noite, aprende a ver com olhos de coruja - enxerga no escuro.

O RISCO DA IDENTIFICAÇÃO COM O VAZIO 

 

Há, no entanto, um perigo: o de se identificar totalmente com a depressão. Quando o ego é engolido pelo inconsciente, a pessoa perde a capacidade de observar o que está vivendo. Tudo se torna absoluto. “Eu sou a tristeza”, “eu sou o fracasso”, “nada faz sentido”.

Por isso, é fundamental que, mesmo nos momentos mais escuros, reste uma chama de consciência: a capacidade de sustentar a tensão entre opostos até que um novo sentido surja. Essa chama pode ser acesa com ajuda: um terapeuta, um amigo, um livro, um gesto de cuidado.

A saída da depressão não acontece por esforço de vontade, mas por reconexão simbólica: quando a pessoa começa a perceber que a escuridão não é o fim, mas uma travessia.

A ALQUIMIA DA ALMA

Jung comparava o processo de individuação — o caminho de tornar-se quem se é — à alquimia. Na alquimia, os metais são submetidos ao fogo até que suas impurezas sejam queimadas, revelando o ouro. O mesmo acontece com a psique: o fogo da dor pode transformar o que parecia perda em maturidade.

 

A depressão, nessa metáfora, é a nigredo, a fase escura da alquimia.. O alquimista precisa suportar o caos inicial, a morte das antigas formas, até que algo novo comece a brilhar. Esse brilho, o aurum philosophicum, não é uma felicidade superficial, mas uma sensação de inteireza — um reencontro com a própria alma.

Não há ouro sem travessia.

O GESTO MÍNIMO 

Para quem está em depressão, qualquer ideia de transformação parece distante. O sofrimento rouba a visão de futuro, tudo se resume a suportar o presente.

 

O caminho de volta não começa com grandes decisões. Começa com o gesto mínimo: abrir a janela, tomar um banho, sair um pouco, escrever uma frase, ouvir uma música. Esses pequenos gestos são, muitas vezes, os fios que a alma lança para se reconectar com o mundo. Cada ato, por menor que seja, é uma afirmação silenciosa: “ainda estou aqui.”

O ego ferido quer desaparecer; a alma quer continuar o diálogo. E é no entre — entre desistir e tentar — que a vida começa a reorganizar-se.

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A ESCUTA DO INVISÍVEL

O grande desafio da depressão não é apenas sair dela, mas escutá-la com atenção. Escutar o que ela revela sobre nossos modos de viver, sobre o que sacrificamos em nome da aparência, sobre o que calamos por medo de rejeição. Escutar o que o corpo diz quando não quer se mover, o que o coração diz quando não sente alegria.

Essa escuta é o início de um novo tipo de consciência: mais profunda, mais humana, mais inteira. É uma etapa do contínuo processo de individuação, processo em que o ser humano busca se tornar aquilo que é em essência — não o que esperavam dele, nem o que ele acreditava precisar ser.

A depressão, nesse sentido, pode ser compreendida como uma iniciação forçada: o velho eu precisa ceder para que o novo possa surgir.

E, como em todo rito de passagem, é preciso coragem para atravessar o limiar.

QUANDO A COR RETORNA

A alma não volta igual do mundo subterrâneo. Depois da travessia, a vida pode não ser mais tão colorida quanto antes — mas é mais verdadeira. É possível  enxergar as nuances e aceitar o cinza entre o branco e o preto. Aprende que a alegria não é ausência de dor, mas uma presença mais ampla, que inclui a dor sem se perder nela.

Muitos que sobreviveram à depressão relatam algo semelhante a uma reconciliação. Reencontram a infância perdida, os desejos esquecidos, o amor por pequenas coisas. Passam a valorizar o simples, o essencial, o vivo.

Talvez a cor que retorne não seja a mesma de antes — não é mais um brilho superficial, mas um tom mais profundo, como o azul do crepúsculo. É a cor de quem viu o fundo e escolheu continuar.

O VALOR DO ESCURO 

“Não nos tornamos iluminados ao imaginar figuras de luz, mas ao tornar consciente a escuridão.” C.G.Jung


A depressão é dura, dolorosa, por vezes insuportável. No entanto, se em algum momento formos capazes de olhar para ela não como inimiga, mas como parte do caminho, o sofrimento pode se transformar em uma fonte profunda de aprendizado e valor.

Quando a vida perde a cor, a alma está pedindo outra paleta. Não mais o brilho artificial do entusiasmo constante, mas as tonalidades verdadeiras da existência: o cinza, o ocre, o violeta, o negro profundo onde o ouro se esconde.

Há beleza também na sombra. E há vida, mesmo quando tudo parece suspenso.

UM RECADO PARA VOCÊ:

Se você se reconhece em algo deste texto, saiba que a depressão não é o fim da estrada, mas um chamado — um convite difícil, às vezes brutal, para um encontro consigo mesmo. Caminhar nesse terreno exige paciência e ajuda. Mas cada passo dado na direção da escuta é um passo em direção à alma.

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